“Hoje, 13 anos depois, é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita... |
(…) Interferíamos a ponto de maquiar o boxeador? De exagerar o seu suor? Assistindo ao material bruto fica claro que tudo deve ser revisto com certa desconfiança. |
As
imagens e as palavras acima fazem parte do documentário “Santiago”
de João Moreira Salles.
A idéia inicial do documentarista, em 1994, era a de realizar um
filme sobre Santiago, mordomo da família Salles, mas o projeto foi
abandonado pelo diretor e o material filmado acabou sendo arquivado e
retomado, somente, 13 anos mais tarde.
“Há
treze anos, quando fiz estas imagens, pensava que o filme começaria
assim: Primeiro uma música dolente. Não essa que eu só conheci
mais tarde, mas algo parecido; depois um movimento lento em direção
a três fotografias.” (SANTIAGO, 2007)
Neste
ponto Salles resolveu, a grosso modo, fazer um filme do filme
esboçando algumas considerações acerca daquilo que havia filmado.
“Santiago” é definido, por alguns críticos, como um exercício
de problematização do gênero documentário pelo tensionamento
entre ficção e realidade que ele carrega. Concordo, mas gostaria de
abordar “Santiago” como arqueologia da tessitura de um
documentário. Nele, o mordomo e personagem Santiago é transposto
pelo pensamento sobre si de Moreira Salles.
“[...]
é a descoberta de um pensamento como 'processo de subjetivação': é
estúpido ver aí um retorno ao sujeito, trata-se da constituição
de modos de existência ou como dizia Nietzsche, a invenção de
novas possibilidades de vida. A existência não como sujeito, mas
como obra de arte; esta última fase é o pensamento-artista.”
(DELEUZE, 1992, p. 120)
O
que é real
em “Santiago”? O mordomo, Santiago Badariotti Merlo, da casa em
que Salles passou a infância? João Moreira Salles e sua direção
tirana? Ou as considerações de Salles, 13 anos depois, acerca das
imagens produzidas? Da proposta de documentário, se tece uma ficção
de si
enquanto autor. Salles transforma em obra de arte sua experiência de
alteridade. Salles se transforma a partir da prática concreta de
voltar-se a si mesmo, interpelado pelas imagens que produziu. Saindo
de si para voltar transformado, desdobrando-se naquele que vê, se vê
e produz imagens. Salles constrói a si como personagem no
imbricamento entre ficção e realidade.
“Santiago” é experiência.
Mais
do que questionar o modo como um documentário atua e intervém na
realidade e negar a capacidade de apreensão da mesma através da
câmera, Moreira Salles tece seu filme num sentido de exposição de
si, uma vez que “Santiago” se estrutura no que está nas
entrelinhas, no fora de quadro, naquilo que é dito quando a câmera
está desligada ou na imagem captada sem o som. Ou seja, na
experiência do fazer fílmico que constrói e medeia a relação
consigo, com o Outro e com as imagens produzidas. O entrelaçamento
desta tríade é possibilidade
para a criação e transformação de si, deixando um espaço aberto
para a imaginação que diluí as fronteiras entre ficção e
realidade.
Sob
um rápido olhar poderíamos inferir que “Santiago” trata-se de
um filme dual – ao mesmo tempo em que o personagem Santiago é
construído, é também construído o cineasta e documentarista João
Moreira Salles. Santiago, figura peculiar, versado em literatura,
música e arte. João, autoritário e controlador, distante de
Santiago e próximo de seus propósitos enquanto cineasta. Seriam
estes aspectos que conformam a existência de Santiago e Salles?
Podemos inferir que o documentário “Santiago” de treze anos
atrás seria completamente diferente do de agora, assim como seu
personagem e diretor/personagem. Imagens e palavras tecem uma
narrativa mutável e nômade em que tudo deve ser visto com certa
desconfiança.
Título: Santiago; País: Brasil; Gênero: Documentário; Tempo: 80 minutos; Ano: 2007.
Bibliografia
DELEUZE,
Gilles. A vida como obra de arte. In: _____. Conversações. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1992.