Plano
médio de uma cozinha classe média alta. Em primeiro plano vemos uma mesa de
madeira, em cima da mesa estão dispostos dois vidros de geléia, um açucareiro e
um pires com manteiga. Em segundo plano, vemos uma geladeira de cor branca,
algumas folhagens e a sacada do apartamento. Ainda em plano médio, entra no
quadro um homem aparentando 50 anos, vestindo calça jeans e camiseta,
carregando em sua mão esquerda uma cesta com pães e em sua mão direita um
celular, que imediatamente são postos sobre a mesa. O homem senta-se diante da
mesa.
Esta
descrição poderia, perfeitamente, compor a cena de um roteiro cinematográfico
qualquer, representando uma cena cotidiana de um homem solitário. Mas o homem
em questão trata-se de Jafar Panahi, diretor
iraniano sentenciado, em dezembro de 2010, a seis
anos de prisão pelo governo de seu país acusado de ser conivente com a intenção
de cometer crimes contra a segurança nacional do país e de fazer propaganda
contra a República Islâmica. Panahi também foi proibido de dirigir filmes e
escrever roteiros por 20 anos, além de ter seus direitos de falar com a mídia e
viajar para o exterior cassados.
A
cena em questão, compõe as primeiras seqüências – que chamam a atenção pela
artificialidade, talvez pelo fato de Panahi ser um diretor de filmes de ficção,
e não de documentários – de “Isto Não é um Filme”, tentativa de Panahi em
narrar um de seus inúmeros roteiros censurados e que, impedido de filmar sua
sociedade, direciona a câmera para ele mesmo.
Ligações
de advogados e de amigos; uma vizinha inconveniente que bate à sua porta,
conversas com o seu amigo Motjaba Mirtahmasb
(co-diretor do filme) e o encontro com o zelador de seu prédio que vem recolher
o lixo. Panahi está insatisfeito em documentar seu cotidiano sem lhes dar
motivação, sem lhes criar sentido fílmico. Também está insatisfeito em
documentar uma expressão puramente conceitual. São cenas que delineiam a ausência,
o vazio. Não é o vazio da impossibilidade de filmar; muito menos
de uma impossibilidade narrativa, discursiva. O vazio está
na impossibilidade de encontro entre o fílmico e o narrativo.
“Então, o 'defeito' faz-se 'potência'; se impõe uma fascinação própria para
suscitar 'a abertura deste movimento infinito que é o próprio encontro, [...]
seu recomeço eterno'” (DIDI-HUBERMAN, 2011). E é pela potência da ausência
que Panahi apresenta o “mundo”.
Didi-Huberman
em “O evitamento do vazio: crença ou tautologia” (1998) aponta para recusa à
temporalidade, ao trabalho do tempo, ao trabalho da memória. Desta
forma, as imagens de Panahi buscam evitar este vazio através da negação
do seu filme, e desta negação, nascem as imagens que nos concernem e nos tocam.
Provocam uma experiência tátil: sentimos a ausência do cenário quando
Panahi traça linhas com fita adesiva no chão de sua sala de estar, na tentativa
de criar o ambiente descrito em um dos seus roteiros censurados. Jafar Panahi,
neste roteiro, narra a história de uma jovem trancada em casa pelos seus pais e
proibida de se matricular no curso de artes de uma faculdade. Enquanto narra
seu roteiro, valendo-se de um cenário improvisado, a imagem que se
produz é de estranhamento: “Seria possível contar um filme?”. Este
estranhamento é o dispositivo para contradições muito maiores do que os
pequenos dramas que vemos na tela, é a cisão entre imagem e narrativa
fílmica.
Plano
fechado de Jafar Panahi, ele está narrando um de seus roteiros proibidos pelo
governo. Subitamente ele pára, baixa a cabeça e diz: “Se pudéssemos contar um
filme, para que filmá-lo?”. Outras cenas de seu cotidiano se sucedem – ele fuma
um cigarro na sacada de seu apartamento, recebe a telentrega de comida – até o
momento em que ele coloca, no aparelho de dvd, uma cópia do seu filme “Ouro
Carmin” e começa a tecer alguns comentários sobre a atuação de Hossain
Emadeddin. Ele interrompe sua fala – visivelmente incomodado –, caminha em
direção ao sofá – que está localizado à sua frente –, senta-se e diz:
Jafar Panahi: Sei lá, talvez eu esteja
tentando passar o tempo. Sinto que estamos aqui criando uma mentira. Como
naquela primeira seqüência que fizemos, o resto também será uma mentira, não
importa o que façamos. […]
Mojtaba Mirtahmasb: Mas você não pode
fazer um filme agora.
Jafar Panahi: Por isso pedi para você
me filmar. Acha que será um grande filme?
Mojtaba Mirtahmasb: Bem, você me
disse...
Jafar Panahi: O que eu disse?
Mojtaba Mirtahmasb: Me pediu para eu
vir aqui. Disse que tinha filmado um pouco e que tinha ficado ruim. Jafar, você
está esperando a confirmação do veredicto por causa do filme que estava
fazendo. […]
Jafar Panahi: E daí?
Mojtaba Mirtahmasb: O que estamos
fazendo não deixa de ser cinema. […]
Jafar Panahi: O que?
Motjaba Mirtahmasb: Este filme que estamos
fazendo.
Jafar Panahi: Chama isto de filme?
Jean
Renoir, em sua
autobiografia, disse que “tudo que se move numa tela é cinema” (RENOIR, 1974).
Isto posto, a contradição no título do filme de Jafar Panahi torna-se evidente:
Por que “Isto Não é um Filme” não seria um filme, sendo feito de imagens em
movimento projetadas numa tela? Ou “Isto Não é um Filme” seria imagem e
não uma sucessão de imagens em movimento projetadas numa tela? Não tenho a
pretensão de encontrar uma resposta para estas perguntas, embora as mesmas, me
levem a pensar sobre o conceito de imagem.
Imagem que desdobra-se em possibilidades de
afeto, não encarcerando-se no real, no discursivo, em designações. Ela não é
afirmação, mas antes a tensão entre o que se vê e o que se diz. Jafar Panahi
constrói seu documentário a partir da transgressão, não
falo de transgressão à proibição de dirigir filmes e escrever roteiros, trato
de transgressão à narrativa fílmica, que se manifesta no próprio título.
Realmente, “não é um filme”. Tão pouco um documentário.
Não
pretendo me ater as questões políticas e sociais que privam Jafar Panahi do seu
direito de ir e vir, assim como do seu direito em trabalhar. O cerne da
questão, no que se pretende este ensaio, é operar com o conceito de imagem
a partir de uma produção cinematográfica que questiona e subverte o próprio
fazer cinematográfico operando um complexo mecanismo cinematográfico que se
correlaciona com – como nos aponta Foucault (2001) – um fazer literário que é
fundante da própria realidade, estabelecendo uma cisão entre o exterior
e o interior, lembrança e memória.
Daí,
inferimos a negação do título: não é um filme, é a imagem
transparente de um sistema opressivo no Irã contemporâneo. Mas também é a “realidade”
estúpida de um homem trancado há meses em seu apartamento, cenário e contexto
perfeitos para que este homem narrasse suas lembranças. Lembranças de um tempo
em que lhe era possível sair e trabalhar. É certo, que a pessoalidade destas
lembranças nos seriam mais confortáveis ao olhar do que a ausência que
retroalimenta memória e imagem. E é justamente, esse conforto ao
olhar, que Jafar Panahi nega, ao mesmo tempo que apresenta o processo
mental de criação, manifesto na ausência fílmica.
Em
1968 Michel Foucault escreve “Isto não é um cachimbo” (2001), em que – a partir
da pintura de René Magritte de
mesmo título – discorre sobre os paradoxos entre ser e representar. Se na obra
de Magritte temos a “contradição entre imagem e texto” (FOUCAULT,
2001). Na obra de Jafar Panahi também encontramos esta contradição e mais,
assim como em Magritte o título
“[...] é duplamente paradoxal. Ele
pretende nomear aquilo que, evidentemente, não tem necessidade de sê-lo (a
forma é bastante conhecida, o nome muito familiar). E eis que no momento em que
ele deveria dar o nome ele o dá, mas negando que é ele” (FOUCAULT, 2001).
É
também, na estrutura de composição – o quadro dentro do quadro, o filme dentro
do filme – e a tensão entre o conceitual e o real que
“Isto Não é um Filme” se aproxima de obras como “Os Passeios de Euclides” ou “A
Condição Humana”, também de Magritte. Sob o olhar de Panahi, esta tensão se
expressa na relação entre o interior de seu apartamento e o exterior
que lhe é inacessível pela prisão domiciliar e a impossibilidade de filmar.
Esta tensão conforma-se na contraposição entre representação do real e apreensão
do real. Ou seja, no jogo entre exterioridade e interioridade
da imagem.
The End
Nos
minutos finais, enquanto Jafar Panahi se despede de Mirtahmasb, bate à sua
porta Hassan, que está substituindo o zelador do prédio, o seu cunhado. Ele vem
coletar o seu lixo e os dois travam diálogo. A “realidade” bate à porta de
Jafar sob a forma de Hassan e ele a
acompanha pelo prédio até o exterior. Ou seria o interior da imagem
produzida ao longo do não-filme? Já que, neste percurso rumo a saída, torna-se
manifesta a possibilidade de apreensão do mundo; enquanto fogos de
artifícios explodem nas ruas celebrando à revelia da proibição do governo
iraniano, transformando uma comemoração em protesto. Enfim,
Panahi o acompanha até sair de casa pela primeira vez, mesmo ouvindo a recomendação
de Hassan para que não saia, porque “podem ver o senhor com a câmera”.
Foucault
em “Isto Não é um Cachimbo” culmina sua análise, à obra de Magritte, apontando
para a ruptura que este estabelece entre semelhança e afirmação.
Como sentencia Foucault: “pintar não é afirmar” (2001). Claro está, este é mais
um ponto de aproximação entre a Magritte e Panahi. Em “Isto Não é um Filme”,
documentar, registrar, filmar, não é afirmar, é antes, produzir
incertezas que evocam imagens, produzem pensamento, “restituindo a potência dos
sonhos abolidos” (BACHELARD, 2006). Ou seja, é a potência do ser que repousa
sobre sua negação, é a "falta-de-ser que é a vida" (DELEUZE,
2010).
Definitivamente,
não é um filme, trata-se de imagem saída da noite, produzida sobre o fio
de uma história. Testemunho do perdido, do que nos arrebata.
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD,
Garton. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DELEUZE,
Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010.
DIDI-HUBERMAN,
Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
_____,
Georges. De semelhança a semelhança. In: Alea – Estudos neolatinos vol.
13, nº 1, 2011.
FOUCAULT,
MicheI. Isto não é um cachimbo (1968). In: _____. Estética: literatura e
pintura, música e cinema. Col. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001.
_____,
Michel. O pensamento do exterior. In: _____.Estética: literatura e pintura,
música e cinema. Col. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001.
RENOIR,
Jean. Ma vie et mes films. Paris: Flammarion, 1974.