quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A mentira como Documentário - Luis Ospina



Um tigre de papel, de Luis Ospina, narra a trajetória de Pedro Manrique Figueroa, militante de esquerda e pioneiro da colagem na Colômbia, a partir de depoimentos de seus contemporâneos – artistas, conhecidos, amigos e amantes. Personalidade turbulenta e complexa, Figueroa tem sua vida e obra analisada de perto pelo olhar atento do cineasta, que tece ainda um delicado painel das transformações políticas e sociais de seu país ao longo do século XX. Mas só há um problema: será que Pedro Manrique Figueroa existiu?

Até aí, nada demais nesta sinopse... É só mais um documentário que narra a trajetória de uma personalidade! Mas, neste caso, fazer essa afirmação seria uma grande mentira, não tão grande e nem tão brilhantemente arquitetada como a contada por Ospina. Não sei se “sacada”  de Ospina reside na construção de um personagem sedutor, cativante e envolvente como Pedro Manrique Figueroa, ou se reside, justamente, em optar pelo gênero documentário para contar uma mentira e transformar o tema principal em pano de fundo, ou seja, a história da Colômbia compreendida entre as décadas de 30 e 80. 

O gênero documentário, comumente, se caracteriza pelo compromisso com a exploração da realidade ou a sua representação – parcial e subjetiva e Ospina desconstrói essa premissa trazendo como protagonista de Um tigre de papel, uma mentira. A palavra “mentira” pode parecer um tanto quanto “pesada”, mas neste caso, “ficção” reduziria toda a grandiosidade de Um tigre de papel e a competência cinematográfica de Luis Ospina. No Brasil, temos como exemplo de documentários que jogam com a tensão entre ficção e realidade, o belíssimo Santiago e o emocionante Jogo de Cena (só para citar os mais "famosos"). Dentro desta proposta (tensionar ficção e realidade), ambos são imbatíveis. Porém, Um tigre de papel de Luis Ospina vai além da realidade e da ficção porque ele conta uma história real (mas para quem essa história seria real?), tendo uma mentira como protagonista.



Título Original: Un tigre de papel
Ano: 2007
Tempo: 115 min
Gênero: Documentário (ou não)
Direção e Roteiro: Luis Ospina
País de Origem: Colômbia



segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Abrindo os trabalhos antropológicos de 2013: Café Antropológico


Desvalorização e discriminação do trabalho doméstico

* Subcapítulo de minha Monografia apresentada, em 09 de julho de 2012, como requisito à obtenção do grau de Bacharela em Ciências Sociais.

A primeira legislação acerca do trabalho doméstico data de 30 de julho de 1923, 88 anos se passaram e no congresso nacional ainda tramitam projetos de leis que pretendem estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre as empregadas domésticas. A discriminação da categoria é histórica, na maior parte dos casos essa é a única alternativa de trabalho para mulheres pobres e semi alfabetizadas. Hoje, o contingente de empregadas domésticas no Brasil representa mais de 7 milhões de trabalhadoras. O que representa 93% de mulheres empregadas no setor doméstico. Dentro deste percentual, 60% são formados por mulheres negras. Portando, a desvalorização e discriminação do trabalho doméstico presente em nossas leis deixam uma dúplice discriminatória que parte da raça superpondo-se a condição feminina.

Cabe destacar a importância das relações de gênero, já que estas comportam uma lógica de associação do trabalho doméstico como trabalho de mulher. É justamente essa definição de lugares entre masculino e feminino – conformada em uma divisão sexual do trabalho – que define quem será o trabalhador doméstico. Ainda com a questão da divisão sexual do trabalho é possível se valer de Heilborn (1999, p. 20) que define gênero “como um sistema simbólico que organiza relações de poder, igualdades e desigualdades no mundo do trabalho”. Esta definição corrobora com o fato de que, no início do século XX as mulheres já eram responsáveis por mais de 80% de todas as ocupações relacionadas ao espaço doméstico. 

Neste contexto histórico e social, de desigualdades é flagrante a ausência de regras legais que conformem e valorizem o trabalho doméstico positivamente. Conforme a cartilha “Trabalho doméstico: direitos e deveres” distribuída pelo Ministério do Trabalho, é considerada empregada doméstica aquela maior de 16 anos que presta serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas. A Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, regulamentada pelo Decreto nº 71.885, de 9 de março de 1973, dispõe sobre a profissão, conceituando e atribuindo-lhe direitos. Somente na Constituição Federal de 1988, foram atribuídos direitos sociais, como: salário mínimo; irredutibilidade salarial; repouso semanal remunerado; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, 1/3 a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias; licença paternidade; aviso prévio; aposentadoria e integração à Previdência Social. Nos anos 2000, a Medida Provisória nº 1.986, acrescenta dispositivos à Lei no 5.859, possibilitando o acesso dos(as) empregados(as) domésticos(as) ao FGTS. Sendo o Seguro-desemprego concedido, exclusivamente, à empregada inscrita no FGTS, por um período mínimo de 15 meses nos últimos 24 meses contados da dispensa sem justa causa. Sendo pago com recursos do FAT, extensão dos benefícios do FGTS as trabalhadoras domésticas. Em 06 de março de 2006 foi editada a medida provisória Nº 284, que altera a legislação do imposto de renda das pessoas físicas e introduz a possibilidade de deduzir a contribuição patronal paga à Previdência Social pelo empregador doméstico incidente sobre o valor da remuneração do empregado. Esta medida provisória teve a intenção de elevar o registro em carteira do trabalhador doméstico, através de concessão de benefício aos empregadores. Ainda no ano de 2006, em 19 de julho, foi editada a Lei n.º 11.324, alterando artigos da Lei n.º 5.859. Nesta edição os trabalhadores domésticos passaram a ter direito a férias de 30 dias, estabilidade para gestantes, direito aos feriados civis e religiosos, além da proibição de descontos de moradia, alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados no local de trabalho.

Estes são alguns dos principais direitos e benefícios que amparam a trabalhadora doméstica e que devem ser considerados como verdadeiros avanços no campo jurídico, ainda assim, cabe assinalar os direitos e benefícios que ainda ainda não foram incorporados à categoria: recebimento do abono salarial e rendimentos relativos ao Programa de Integração Social (PIS), em virtude de não ser o(a) empregador(a) contribuinte desse programa; salário-família; benefícios por acidente de trabalho (ocorrendo acidente e necessitando de afastamento, o benefício será auxílio-doença); adicional de periculosidade e insalubridade; horas extras; jornada de trabalho fixada em lei e adicional noturno. 

A questão dos direitos trabalhistas acerca do trabalho doméstico está muito em voga no momento, inclusive, é possível se estabelecer uma relação com a questão dos direitos humanos. Exemplo disto são os debates acerca do tema em nível internacional – como exemplo cito as Conferências Internacionais do Trabalho (CIT) de 2010 e 2011, organizada pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) – que poderá resultar na adoção de um instrumento internacional que regule o trabalho doméstico remunerado. O Programa Regional de Gênero e Trabalho Decente da OIT desenvolveu uma série de oito Notas Técnicas sob o título “O Trabalho Doméstico na América Latina e Caribe” com a intenção de promover o trabalho decente para as trabalhadoras do setor doméstico,além de abordar a questão dos salários dignos para estas trabalhadoras, a erradicação do trabalho infantil doméstico, ampliação da proteção para as trabalhadoras domésticas e o direito de organização das mesmas. Basta uma leitura rápida por alguma destas notas para se perceber o contexto de desigualdades e precariedade em que se encontra o trabalho doméstico na atualidade: 

"Considerando que o trabalho doméstico continua sendo subvalorizado e invisível e é executado principalmente por mulheres e meninas, muitas das quais são migrantes ou membros de comunidades desfavorecidas e, portanto, particularmente vulneráveis à discriminação em relação às condições de emprego e trabalho, bem como outros abusos de direitos humanos. (…) Regulamentar e registrar com exatidão as horas de trabalho realizadas, inclusive as horas extras, definir e informar sobre a taxa de remuneração ou forma de compensação das horas extras e das horas de disponibilidade de trabalho imediata, com fácil acesso dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas a esta informação". (OIT, 2011, p. 08). 

Valendo-se de Lynn Hunt que afirma: “os direitos do homem apenas serviram para instituir uma nova, e mais insidiosa, forma de disciplina” (HUNT, 2005, p. 278). É possível inferir que as recomendações feitas pela OIT, isto é, uma regulamentação efetiva da categoria de trabalhadores domésticos, corrobora com a ideia de controle por parte do Estado e por parte do patrão. Em um primeiro momento tendemos a encarar essas mudanças como benéficas para a classe trabalhadora do setor doméstico, porém creio ser necessário olhar o outro lado da moeda questionando se as propostas de mudança e as mudanças ocorridas no âmbito da legislação do trabalho doméstico seriam mudanças que beneficiariam apenas a classe trabalhadora ou, também, a classe que se vale deste serviço. Neste ponto, coloca-se em xeque a dimensão das "táticas" e "estratégias" exercidas pelas trabalhadoras do setor doméstico que se expressa no trabalho como diarista e que permite a estas trabalhadoras um maior controle sobre o seu tempo e sua força de trabalho, algo que provavelmente se perderia, ou se restringiria, na regulamentação plena do trabalho doméstico em que o controle do tempo e da força de trabalho ficariam a cargo do Estado e do patrão.


REFERÊNCIAS

HEILBORN, Maria Luiza e SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, Sérgio (org.) O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), ANPOCS/CAPES. São Paulo: Editora Sumaré, 1999. 
HUNT, Lynn. O romance e as origens dos Direitos Humanos: interseções entre história, psicologia e literatura. In: Varia hist., Jul, 2005. 
OIT. Passos para a ratificação da convenção nº 189 sobre as trabalhadoras e os trabalhadores domésticos. (Nota informativa nº 8). Organização Internacional do Trabalho, Escritório no Brasil. Brasília: ILO, 2011

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O “uso das mãos” no trabalho doméstico

* Subcapítulo de minha Monografia apresentada, em 09 de julho de 2012, como requisito à obtenção do grau de Bacharela em Ciências Sociais.

A saída de campo realizada no dia 10 de março de 2010 tinha como objetivo construir uma narrativa fotográfica acerca da rotina de trabalho de Vera, trazendo a dimensão da prática cotidiana de limpeza e de cuidados com a casa. A primeira tarefa de Vera era arrumar a cama de Vicente. Vera era ágil e enquanto eu batia as fotografias (em plano aberto) precisei pedir para que ela arrumasse a cama mais devagar, pois as fotos estavam saindo desfocadas. Com a cama arrumada Vera seguiu em direção a cozinha – localizada em uma porta a direita de quem sai do corredor. A cozinha era ampla como a sala. Possuía uma grande mesa, próxima a porta, dois armários, uma geladeira e um fogão (em perspectiva com a porta de entrada da cozinha). No lado esquerdo de quem entra na cozinha localizava-se a pia que estava com algumas louças sujas, como: xícara, faca, copo, prato, etc. E era essa a segunda tarefa cotidiano de Vera: lavar a louça do café da manhã. Procurei captar essa tarefa doméstica utilizando dois enquadramentos diferentes: um plano aberto abrangendo assim, a postura corporal de Vera exercendo a tarefa doméstica e um plano fechado nas mãos de Vera (infelizmente esses plano fechados ficaram muito escuros), enquadrando o gesto de limpeza de um copo. Após a louça ser lavada Vera começou a varrer a cozinha, novamente recorri ao enquadramento em plano aberto. Vera, em todas as suas tarefas, era muito rápida, tanto, que enquanto ela varria a cozinha eu precisava pedir para que ela fosse mais devagar, para que as fotos não saíssem tremidas. Novamente recorri ao plano aberto para capturar a limpeza do banheiro e ao plano fechado nas mãos/gestos de Vera. Perguntei para Vera o que ela ainda tinha para fazer. Vera respondeu que ainda teria que varrer a sala e o pátio.

No dia 24 de agosto de 2010 realizei com Marion uma saída de campo com o mesmo objetivo – de construir uma narrativa fotográfica acerca do trabalho doméstico. Marion iniciou suas atividades recolhendo o lixo da cozinha, procurei fotografa-la em seus gestos (plano fechado) e em seu contexto (plano aberto) sem sucesso, pois os movimentos de Marion eram rápidos e as fotos em close acabaram ficando desfocadas e as em que deveriam ser em plano aberto acabaram ficando em plano médio por conta do pequeno espaço na cozinha. Após recolher o lixo, Marion seguiu para o quarto, para arrumar a cama. Novamente a agilidade de Marion não permitiu que eu tirasse fotografias com um bom foco. Para poder evocar a ideia de movimento e agilidade presentes no cotidiano do trabalho doméstico foi preciso utilizar o dispositivo de captação contínua em três quadros, tendo assim, um encadeamento de três planos, que juntos evocam essa ideia do movimento e da agilidade do trabalho doméstico. Ainda que as fotos saíssem desfocadas, poderia explorar a ideia de movimento que aquele “desfoque” trazia tirando as fotos em sequencia. Do quarto seguimos para a área de serviço onde Marion pôs as roupas sujas de molho. Marion explicou que como ela vai à casa de Ana as terças e quintas-feiras ela sempre procura lavar as roupas na terça-feira e passá-las na quinta-feira. Após colocar as roupas de molho Marion seguiu para o banheiro, onde iria iniciar a limpeza. No banheiro observei que Marion limpava o chão de joelhos com um pano. Perguntei se não era melhor utilizar um esfregão do tipo bruxa. Marion respondeu que Ana havia comprado uma bruxa, mas que ela não gostava de usar, pois parecia que não deixa o chão limpo. Acrescentou que também não gostava de usar luvas, tinha a sensação de que atrapalhavam o movimento das mãos na hora de limpar. Terminada a limpeza no banheiro seguimos para a cozinha para lavar a louça! Em tom de confissão Marion disse: “Sabe, ela não faz nada! Se cair um papel no chão, fica! Fica tudo pro dia que eu venho!”. 

Destas descrições é possível inferir o quanto a câmera fotográfica participou como mediadora deste processo de interação, realizando um recorte do espaço em que se dá a situação etnográfica e um recorte da duração temporal deste “estar-lá” (GEERTZ, 2002). A partir do encadeamento destas imagens realizadas no processo denominado de pós-campo, processo este que se refere ao tratamento das imagens produzidas (escrita do formulário de avaliação, análise, conceituação e nomeação das fotografias) e a partir das discussões semanais realizadas no âmbito GT Fotografia, que me foi possível pensar os gestos, movimentos e as práticas que circunscrevem o trabalho doméstico.

Algumas fotos foram tiradas valendo-se do plano aberto, para assim trazer a idéia de todo contexto em que aquela prática está inserida. Já a opção para a maioria das fotos foi o do plano fechado nas mãos e gestos de Vera e Marion, enquanto realizam suas tarefas domésticas. Conforme nos aponta François Soulages em Esthétique de la Photographie (1998), para vários pontos de vistas, temos várias fotografias que engendram universos diferentes. Nesta análise estética da fotografia o autor concluiu que a fotografia não é somente material ou ferramenta, mas ela é o principal vetor estrutural da criação. Sensível a esta potência criadora da fotografia e privilegiando o ponto de vista do plano fechado nos gestos e práticas destas trabalhadoras atento o meu olhar para o “uso das mãos” (FRANCO, 1997) o que nos faz perceber o quanto este trabalho manual é significativo para a conformação simbólica do trabalho doméstico. Oriundo de um sistema econômico escravista, o trabalho doméstico, carrega os valores negativos que circunscreveram esse sistema, dentre eles a degradação do trabalho manual. Logo, o menosprezo pelo “uso das mãos” – atrelado a escravidão – arraigou-se culturalmente no imaginário brasileiro, corroborando para a desvalorização e discriminação do trabalho doméstico.


REFERÊNCIAS:

FRANCO, Maria Sylvia C. F. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. Rio de janeiro: Ed. UFRGS, 2002.

Documentário: Onde se mora não é onde se trabalha

Alvorada - Região Metropolitana de Porto Alegre/RS, nome que refencia a população constituída em sua maioria por trabalhadores que acordam nas primeiras horas da manhã para trabalhar em Porto Alegre (Capital). Parto do estudo das trajetória sociais de duas mulheres, moradoras de Alvorada que trabalham como empregadas domésticas em Porto Alegre: Vera, 60 anos é usuária da linha Passo da Figueira via Ipiranga há aproximadamente dois anos, e a utiliza segunda a sábado. Vera embarca com o ônibus já lotado todos os dias na parada 51, no Bairro Formoza, em Alvorada. Marion, 57 anos, é empregada doméstica há 34 anos. Utiliza a linha Passo da Figueira via Ipiranga nas terças e quintas-feiras. Segundas, quartas e sextas-feiras é usuária da linha Alvorada via Assis Brasil. Seu embarque ocorre na parada 52, Bairro Bela Vista, em Alvorada. Cenas cotidianas de deslocamento e trabalho narram, a partir dos gestos e práticas de Marion a rotina desse viver urbano de embarques e desembarques, de conversas e interações, de espera e de trabalho. A estas cenas cotidianas cruzam-se as lembranças de Vera, lembranças do bairro que um dia abrigou a sua morada e hoje abriga a casa em que ela trabalha.

Direção: Luciana Tubello Caldas
Roteiro: Luciana Tubello Caldas
Edição: Luciana Tubello Caldas
Som: Luciana Tubello Caldas e Stéphanie Bexiga
Imagens: Ana Paula Parodi Ederdardt, Luciana Tubello Caldas, Marize Schons e Renata Tomaz do Amaral.

Para assistir: Onde se mora não é onde se trabalha