domingo, 24 de fevereiro de 2013

O “uso das mãos” no trabalho doméstico

* Subcapítulo de minha Monografia apresentada, em 09 de julho de 2012, como requisito à obtenção do grau de Bacharela em Ciências Sociais.

A saída de campo realizada no dia 10 de março de 2010 tinha como objetivo construir uma narrativa fotográfica acerca da rotina de trabalho de Vera, trazendo a dimensão da prática cotidiana de limpeza e de cuidados com a casa. A primeira tarefa de Vera era arrumar a cama de Vicente. Vera era ágil e enquanto eu batia as fotografias (em plano aberto) precisei pedir para que ela arrumasse a cama mais devagar, pois as fotos estavam saindo desfocadas. Com a cama arrumada Vera seguiu em direção a cozinha – localizada em uma porta a direita de quem sai do corredor. A cozinha era ampla como a sala. Possuía uma grande mesa, próxima a porta, dois armários, uma geladeira e um fogão (em perspectiva com a porta de entrada da cozinha). No lado esquerdo de quem entra na cozinha localizava-se a pia que estava com algumas louças sujas, como: xícara, faca, copo, prato, etc. E era essa a segunda tarefa cotidiano de Vera: lavar a louça do café da manhã. Procurei captar essa tarefa doméstica utilizando dois enquadramentos diferentes: um plano aberto abrangendo assim, a postura corporal de Vera exercendo a tarefa doméstica e um plano fechado nas mãos de Vera (infelizmente esses plano fechados ficaram muito escuros), enquadrando o gesto de limpeza de um copo. Após a louça ser lavada Vera começou a varrer a cozinha, novamente recorri ao enquadramento em plano aberto. Vera, em todas as suas tarefas, era muito rápida, tanto, que enquanto ela varria a cozinha eu precisava pedir para que ela fosse mais devagar, para que as fotos não saíssem tremidas. Novamente recorri ao plano aberto para capturar a limpeza do banheiro e ao plano fechado nas mãos/gestos de Vera. Perguntei para Vera o que ela ainda tinha para fazer. Vera respondeu que ainda teria que varrer a sala e o pátio.

No dia 24 de agosto de 2010 realizei com Marion uma saída de campo com o mesmo objetivo – de construir uma narrativa fotográfica acerca do trabalho doméstico. Marion iniciou suas atividades recolhendo o lixo da cozinha, procurei fotografa-la em seus gestos (plano fechado) e em seu contexto (plano aberto) sem sucesso, pois os movimentos de Marion eram rápidos e as fotos em close acabaram ficando desfocadas e as em que deveriam ser em plano aberto acabaram ficando em plano médio por conta do pequeno espaço na cozinha. Após recolher o lixo, Marion seguiu para o quarto, para arrumar a cama. Novamente a agilidade de Marion não permitiu que eu tirasse fotografias com um bom foco. Para poder evocar a ideia de movimento e agilidade presentes no cotidiano do trabalho doméstico foi preciso utilizar o dispositivo de captação contínua em três quadros, tendo assim, um encadeamento de três planos, que juntos evocam essa ideia do movimento e da agilidade do trabalho doméstico. Ainda que as fotos saíssem desfocadas, poderia explorar a ideia de movimento que aquele “desfoque” trazia tirando as fotos em sequencia. Do quarto seguimos para a área de serviço onde Marion pôs as roupas sujas de molho. Marion explicou que como ela vai à casa de Ana as terças e quintas-feiras ela sempre procura lavar as roupas na terça-feira e passá-las na quinta-feira. Após colocar as roupas de molho Marion seguiu para o banheiro, onde iria iniciar a limpeza. No banheiro observei que Marion limpava o chão de joelhos com um pano. Perguntei se não era melhor utilizar um esfregão do tipo bruxa. Marion respondeu que Ana havia comprado uma bruxa, mas que ela não gostava de usar, pois parecia que não deixa o chão limpo. Acrescentou que também não gostava de usar luvas, tinha a sensação de que atrapalhavam o movimento das mãos na hora de limpar. Terminada a limpeza no banheiro seguimos para a cozinha para lavar a louça! Em tom de confissão Marion disse: “Sabe, ela não faz nada! Se cair um papel no chão, fica! Fica tudo pro dia que eu venho!”. 

Destas descrições é possível inferir o quanto a câmera fotográfica participou como mediadora deste processo de interação, realizando um recorte do espaço em que se dá a situação etnográfica e um recorte da duração temporal deste “estar-lá” (GEERTZ, 2002). A partir do encadeamento destas imagens realizadas no processo denominado de pós-campo, processo este que se refere ao tratamento das imagens produzidas (escrita do formulário de avaliação, análise, conceituação e nomeação das fotografias) e a partir das discussões semanais realizadas no âmbito GT Fotografia, que me foi possível pensar os gestos, movimentos e as práticas que circunscrevem o trabalho doméstico.

Algumas fotos foram tiradas valendo-se do plano aberto, para assim trazer a idéia de todo contexto em que aquela prática está inserida. Já a opção para a maioria das fotos foi o do plano fechado nas mãos e gestos de Vera e Marion, enquanto realizam suas tarefas domésticas. Conforme nos aponta François Soulages em Esthétique de la Photographie (1998), para vários pontos de vistas, temos várias fotografias que engendram universos diferentes. Nesta análise estética da fotografia o autor concluiu que a fotografia não é somente material ou ferramenta, mas ela é o principal vetor estrutural da criação. Sensível a esta potência criadora da fotografia e privilegiando o ponto de vista do plano fechado nos gestos e práticas destas trabalhadoras atento o meu olhar para o “uso das mãos” (FRANCO, 1997) o que nos faz perceber o quanto este trabalho manual é significativo para a conformação simbólica do trabalho doméstico. Oriundo de um sistema econômico escravista, o trabalho doméstico, carrega os valores negativos que circunscreveram esse sistema, dentre eles a degradação do trabalho manual. Logo, o menosprezo pelo “uso das mãos” – atrelado a escravidão – arraigou-se culturalmente no imaginário brasileiro, corroborando para a desvalorização e discriminação do trabalho doméstico.


REFERÊNCIAS:

FRANCO, Maria Sylvia C. F. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. Rio de janeiro: Ed. UFRGS, 2002.

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