quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A Síntese Disjuntiva em “Dez” de Abbas Kiarostami

Alain Badiou, a partir de Gilles Deleuze, define síntese disjuntiva como “uma relação que não é uma relação, uma relação paradoxal, uma ruptura” (BADIOU, 2004, p. 28). Mas como essa síntese disjuntiva se manifesta no filme “Dez” de Abbas Kiarostami?
O filme traz dez seqüências que se passam em dias diferentes, mas sempre no carro de uma jovem mulher divorciada e mãe. Ela enfrenta a rejeição do filho por não agir dentro código moral iraniano. Destas dez seqüências, seis abordam a vida de cinco diferentes mulheres que pegam carona com a jovem divorciada: sua irmã, uma senhora religiosa, uma prostituta, uma jovem apaixonada e uma amiga.
Podemos inferir que a síntese disjuntiva em “Dez” se manifesta segundo os termos carro e palavra. Por exemplo, que termo se relaciona diretamente com o termo carro? Uma resposta previsível seria o termo corrida, não o termo palavra. Já com o termo palavra, seria possível estabelecer uma relação com os termos tribunal, escola, teatro... Enfim, espaços de enunciação da palavra. Claro está, entre os termos carro e palavra, não existe uma relação previsível. Desta forma, “Dez” se constrói sob a base da diferença. O filme de Abbas Kiarostami, é a síntese criada no lugar em que se estabeleceu uma ruptura entre os termos carro e palavra. Na perspectiva do cinema como experimentação filosófica de Alain Badiou:

“(...) la filosofía es el pensamiento de las rupturas o el pensamiento de las relaciones que no son relaciones. Es posible decirlo de outra manera: la filosofía fabrica uma síntesis, inventa uma síntesis cuando la síntesis no esta dada, o bien, si lo prefieren, la filosofía crea uma nueva síntesis em el lugar donde hay uma ruptura” (BADIOU, 2004, p. 35)



A ruptura e os paradoxos dilatam-se ao longo do filme. Mena Akabari, a mulher divorciada, desabafa: “As leis apodrecidas dessa nossa sociedade não dão direitos às mulheres!”. Ela diz isso do seu carro, enquanto circula pela cidade de Teerã. Espaço público, historicamente destinado aos homens. A frase é proferida pela mãe, que conduz o carro, mas quem está no enquadramento é seu filho, Amin. Tensão entre imagem e palavra. Ruptura que enseja a criação. Mas o que é criado? Ficção ou Documentário? Os atores não são profissionais, interpretam versões de si mesmos. Os diálogos, foram concebidos após longas conversas entre os “atores” e o diretor. Kiarostami, novamente, vale-se da ruptura para a criação. Ficção e documentário, termos paradoxais que em sua relação sem relação, transformam-se em uma nova ideia do que seja documentário ou ficção.




Este relato, poderia ter sido proferido por mim ou por qualquer outra mulher ocidental. Nós, mulheres ocidentais, livres de um código moral que nos impõe o uso de um véu. Livres, mas aprisionadas pelo julgamento de um homem sobre os nossos corpos. Mulheres iranianas, aprisionadas à códigos morais que não partilhamos, ao mesmo tempo, aos padrões de beleza que conhecemos bem. Cinema, fabricação da realidade com a qual nos identificamos. Oriente e Ocidente, imagens carregadas de valores que são postos à discussão. E, na síntese da ideia corrente de uma dessemelhança entre Oriente e Ocidente, Kiarostami produz “Dez” como síntese da situação da mulher no Irã. Salvo as peculiaridades culturais, os dramas das mulheres iranianas descortinados no filme não diferem de nossos dramas enquanto mulheres ocidentais: problemas na relação amorosa, filhos indisciplinados, crise espiritual, etc.
“Dez” de Abbas Abbas Kiarostami, indica uma síntese disjuntiva justamente por sua alteridade. Abertura de mundos, construção e desconstrução do olhar sobre o outro e sobre nós mesmas. “Dez” é a imagem que produz imagens. Provoca e evoca relações e outros modos de pensar. Kiarostami, toma de assalto o código moral iraniano e com ele cria uma síntese da mulher contemporânea.



Bibliografia

BADIOU, Alain. El cine como experimentación filosófica. In: YOEL, Gerardo (Comp..). Pensar el cine I. Imagen, ética y filosofia. Buenos Aires: Manantial, 2004.

Nenhum comentário: