sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Notas sobre “Isto Não é um Filme” de Jafar Panahi[1]


Fade in[2]

Plano médio de uma cozinha classe média alta. Em primeiro plano vemos uma mesa de madeira, em cima da mesa estão dispostos dois vidros de geléia, um açucareiro e um pires com manteiga. Em segundo plano, vemos uma geladeira de cor branca, algumas folhagens e a sacada do apartamento. Ainda em plano médio, entra no quadro um homem aparentando 50 anos, vestindo calça jeans e camiseta, carregando em sua mão esquerda uma cesta com pães e em sua mão direita um celular, que imediatamente são postos sobre a mesa. O homem senta-se diante da mesa.
Esta descrição poderia, perfeitamente, compor a cena de um roteiro cinematográfico qualquer, representando uma cena cotidiana de um homem solitário. Mas o homem em questão trata-se de Jafar Panahi[3], diretor iraniano sentenciado, em dezembro de 2010[4], a seis anos de prisão pelo governo de seu país acusado de ser conivente com a intenção de cometer crimes contra a segurança nacional do país e de fazer propaganda contra a República Islâmica. Panahi também foi proibido de dirigir filmes e escrever roteiros por 20 anos, além de ter seus direitos de falar com a mídia e viajar para o exterior cassados.
A cena em questão, compõe as primeiras seqüências – que chamam a atenção pela artificialidade, talvez pelo fato de Panahi ser um diretor de filmes de ficção, e não de documentários – de “Isto Não é um Filme”, tentativa de Panahi em narrar um de seus inúmeros roteiros censurados e que, impedido de filmar sua sociedade, direciona a câmera para ele mesmo.

Spoiller[5]

Ligações de advogados e de amigos; uma vizinha inconveniente que bate à sua porta, conversas com o seu amigo Motjaba Mirtahmasb[6] (co-diretor do filme) e o encontro com o zelador de seu prédio que vem recolher o lixo. Panahi está insatisfeito em documentar seu cotidiano sem lhes dar motivação, sem lhes criar sentido fílmico. Também está insatisfeito em documentar uma expressão puramente conceitual. São cenas que delineiam a ausência, o vazio. Não é o vazio da impossibilidade de filmar; muito menos de uma impossibilidade narrativa, discursiva. O vazio está na impossibilidade de encontro entre o fílmico e o narrativo. “Então, o 'defeito' faz-se 'potência'; se impõe uma fascinação própria para suscitar 'a abertura deste movimento infinito que é o próprio encontro, [...] seu recomeço eterno'” (DIDI-HUBERMAN, 2011). E é pela potência da ausência que Panahi apresenta o “mundo”.
Didi-Huberman em “O evitamento do vazio: crença ou tautologia” (1998) aponta para recusa à temporalidade, ao trabalho do tempo, ao trabalho da memória. Desta forma, as imagens de Panahi buscam evitar este vazio através da negação do seu filme, e desta negação, nascem as imagens que nos concernem e nos tocam. Provocam uma experiência tátil: sentimos a ausência do cenário quando Panahi traça linhas com fita adesiva no chão de sua sala de estar, na tentativa de criar o ambiente descrito em um dos seus roteiros censurados. Jafar Panahi, neste roteiro, narra a história de uma jovem trancada em casa pelos seus pais e proibida de se matricular no curso de artes de uma faculdade. Enquanto narra seu roteiro, valendo-se de um cenário improvisado, a imagem que se produz é de estranhamento: “Seria possível contar um filme?”. Este estranhamento é o dispositivo para contradições muito maiores do que os pequenos dramas que vemos na tela, é a cisão entre imagem e narrativa fílmica.
Plano fechado de Jafar Panahi, ele está narrando um de seus roteiros proibidos pelo governo. Subitamente ele pára, baixa a cabeça e diz: “Se pudéssemos contar um filme, para que filmá-lo?”. Outras cenas de seu cotidiano se sucedem – ele fuma um cigarro na sacada de seu apartamento, recebe a telentrega de comida – até o momento em que ele coloca, no aparelho de dvd, uma cópia do seu filme “Ouro Carmin” e começa a tecer alguns comentários sobre a atuação de Hossain Emadeddin. Ele interrompe sua fala – visivelmente incomodado –, caminha em direção ao sofá – que está localizado à sua frente –, senta-se e diz:


Jafar Panahi: Sei lá, talvez eu esteja tentando passar o tempo. Sinto que estamos aqui criando uma mentira. Como naquela primeira seqüência que fizemos, o resto também será uma mentira, não importa o que façamos. […]
Mojtaba Mirtahmasb: Mas você não pode fazer um filme agora.
Jafar Panahi: Por isso pedi para você me filmar. Acha que será um grande filme?
Mojtaba Mirtahmasb: Bem, você me disse...
Jafar Panahi: O que eu disse?
Mojtaba Mirtahmasb: Me pediu para eu vir aqui. Disse que tinha filmado um pouco e que tinha ficado ruim. Jafar, você está esperando a confirmação do veredicto por causa do filme que estava fazendo. […]
Jafar Panahi: E daí?
Mojtaba Mirtahmasb: O que estamos fazendo não deixa de ser cinema. […]
Jafar Panahi: O que?
Motjaba Mirtahmasb: Este filme que estamos fazendo.
Jafar Panahi: Chama isto de filme?


Jean Renoir[7], em sua autobiografia, disse que “tudo que se move numa tela é cinema” (RENOIR, 1974). Isto posto, a contradição no título do filme de Jafar Panahi torna-se evidente: Por que “Isto Não é um Filme” não seria um filme, sendo feito de imagens em movimento projetadas numa tela? Ou “Isto Não é um Filme” seria imagem e não uma sucessão de imagens em movimento projetadas numa tela? Não tenho a pretensão de encontrar uma resposta para estas perguntas, embora as mesmas, me levem a pensar sobre o conceito de imagem.

Diegese[8]

Imagem que desdobra-se em possibilidades de afeto, não encarcerando-se no real, no discursivo, em designações. Ela não é afirmação, mas antes a tensão entre o que se vê e o que se diz. Jafar Panahi constrói seu documentário a partir da transgressão[9], não falo de transgressão à proibição de dirigir filmes e escrever roteiros, trato de transgressão à narrativa fílmica, que se manifesta no próprio título. Realmente, “não é um filme”. Tão pouco um documentário.
Não pretendo me ater as questões políticas e sociais que privam Jafar Panahi do seu direito de ir e vir, assim como do seu direito em trabalhar. O cerne da questão, no que se pretende este ensaio, é operar com o conceito de imagem a partir de uma produção cinematográfica que questiona e subverte o próprio fazer cinematográfico operando um complexo mecanismo cinematográfico que se correlaciona com – como nos aponta Foucault (2001) – um fazer literário que é fundante da própria realidade, estabelecendo uma cisão entre o exterior e o interior, lembrança e memória.
Daí, inferimos a negação do título: não é um filme[10], é a imagem transparente de um sistema opressivo no Irã contemporâneo. Mas também é a “realidade” estúpida de um homem trancado há meses em seu apartamento, cenário e contexto perfeitos para que este homem narrasse suas lembranças. Lembranças de um tempo em que lhe era possível sair e trabalhar. É certo, que a pessoalidade destas lembranças nos seriam mais confortáveis ao olhar do que a ausência que retroalimenta memória e imagem. E é justamente, esse conforto ao olhar, que Jafar Panahi nega, ao mesmo tempo que apresenta o processo mental de criação, manifesto na ausência fílmica.
Em 1968 Michel Foucault escreve “Isto não é um cachimbo” (2001), em que – a partir da pintura de René Magritte[11] de mesmo título – discorre sobre os paradoxos entre ser e representar. Se na obra de Magritte temos a “contradição entre imagem e texto” (FOUCAULT, 2001). Na obra de Jafar Panahi também encontramos esta contradição e mais, assim como em Magritte o título


“[...] é duplamente paradoxal. Ele pretende nomear aquilo que, evidentemente, não tem necessidade de sê-lo (a forma é bastante conhecida, o nome muito familiar). E eis que no momento em que ele deveria dar o nome ele o dá, mas negando que é ele” (FOUCAULT, 2001).

É também, na estrutura de composição – o quadro dentro do quadro, o filme dentro do filme – e a tensão entre o conceitual e o real[12] que “Isto Não é um Filme” se aproxima de obras como “Os Passeios de Euclides” ou “A Condição Humana”, também de Magritte. Sob o olhar de Panahi, esta tensão se expressa na relação entre o interior de seu apartamento e o exterior que lhe é inacessível pela prisão domiciliar e a impossibilidade de filmar. Esta tensão conforma-se na contraposição entre representação do real e apreensão do real. Ou seja, no jogo entre exterioridade e interioridade da imagem.

The End

Nos minutos finais, enquanto Jafar Panahi se despede de Mirtahmasb, bate à sua porta Hassan, que está substituindo o zelador do prédio, o seu cunhado. Ele vem coletar o seu lixo e os dois travam diálogo. A “realidade” bate à porta de Jafar sob a forma de Hassan[13] e ele a acompanha pelo prédio até o exterior. Ou seria o interior da imagem produzida ao longo do não-filme? Já que, neste percurso rumo a saída, torna-se manifesta a possibilidade de apreensão do mundo; enquanto fogos de artifícios explodem nas ruas celebrando à revelia da proibição do governo iraniano, transformando uma comemoração em protesto[14]. Enfim, Panahi o acompanha até sair de casa pela primeira vez, mesmo ouvindo a recomendação de Hassan para que não saia, porque “podem ver o senhor com a câmera”.
Foucault em “Isto Não é um Cachimbo” culmina sua análise, à obra de Magritte, apontando para a ruptura que este estabelece entre semelhança e afirmação. Como sentencia Foucault: “pintar não é afirmar” (2001). Claro está, este é mais um ponto de aproximação entre a Magritte e Panahi. Em “Isto Não é um Filme”, documentar, registrar, filmar, não é afirmar, é antes, produzir incertezas que evocam imagens, produzem pensamento, “restituindo a potência dos sonhos abolidos” (BACHELARD, 2006). Ou seja, é a potência do ser que repousa sobre sua negação, é a "falta-de-ser que é a vida" (DELEUZE, 2010).

Definitivamente, não é um filme, trata-se de imagem saída da noite, produzida sobre o fio de uma história. Testemunho do perdido, do que nos arrebata.



BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Garton. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
_____, Georges. De semelhança a semelhança. In: Alea – Estudos neolatinos vol. 13, nº 1, 2011.
FOUCAULT, MicheI. Isto não é um cachimbo (1968). In: _____. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Col. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
_____, Michel. O pensamento do exterior. In: _____.Estética: literatura e pintura, música e cinema. Col. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
RENOIR, Jean. Ma vie et mes films. Paris: Flammarion, 1974.





[1] Título: This is not a Film; País: Irã; Gênero: Documentário; Tempo: 77 minutos; Ano: 2010; Direção: Jafar Panahi, Mojtaba Mirtahmasb.
[2] Efeito de aparecimento gradual de imagem. Comumente utilizado no início de um filme, após os créditos iniciais.
[3] Jafar Panahi realizou diversos curtas-metragens antes de seu longa-metragem “O Balão Branco”, que lhe valeu um prêmio no Festival de Cannes em 1995. Em 1997 venceu o Leopardo de Ouro em Locarno com “O Espelho”. Em 2000, “O Círculo” valeu-lhe o Leão de Ouro em Veneza. “Offside” ganhou o Urso de Prata (Grande Prêmio do Júri) na Berlinale em 2006. Em todos estes filmes, Jafar Panahi examina de forma crítica a realidade social do seu país.
[4]   Sentença que recebeu sua confirmação em outubro de 2011.
[5]   Termo usado para definir revelações de fatos importantes da história de um filme.
[6]  Iniciou no cinema profissional em 1990 desempenhado as funções de sonoplasta, editor de som, assistente de direção e diretor de produção em longas-metragens. Estreou-se na realização de documentários em 1996 com o filme “Banner”.
[7] Cineasta pertencente à escola do realismo poético francês. Dirigiu filmes como: A Grande Ilusão de 1937, A Regra Do Jogo de 1939 e A Carruagem de Ouro de 1952.
[8]  Em cinema, chama-se de diegese a realidade própria da narrativa fílmica.
[9] Fazer um não filme seria uma forma de protestar, visto que, ainda lhe restava certa esperança de ter sua sentença anulada.
[10] Outra análise possível acerca da negação no título seria a de que o mesmo estabelece uma relação entre o contexto sócio-histórico de seu autor-personagem já que, por questões políticas, ele é privado de afirmar que é um filme; com a industria cinematográfica, que requer uma estrutura hierárquica bem definida, com as funções de pré-produção, produção e pós-produção muito bem demarcadas. O não-filme de Panahi evidencia a rigidez industrial do cinema hollywoodiano. Claro está, este foco de análise seria o germe para outro ensaio.
[11] Importante pintor Surrealista belga (1898 – 1967). Valeu-se de processos ilusionistas, visando o contraste entre o tratamento realista dos objetos e a atmosfera irreal dos conjuntos.
[12] Esta tensão também é percebida nas obras neo-realistas iranianas de Abbas Kiarostami, Dariush Mehrjui, Majid Majidi, Mohsen Makhmalbaf, Niki Karimi e outros.
[13] Não sabemos se é por um acaso ou por uma premeditação que Hassan bate à sua porta mas é pertinente mencionar um comentário feito por João Moreira Salles no documentário Santiago quando de sua reflexão sobre o material bruto do filme: “Hoje, 13 anos depois, é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita. Interferíamos a ponto de maquiar o boxeador? De exagerar o seu suor? Assistindo ao material bruto fica claro que tudo deve ser revisto com certa desconfiança.”
[14] O documentário começou a ser rodado cinco dias antes das comemorações do Ano Novo iraniano (Ano Novo Persa), em 21 de março. É nessa data que acontece o festival de fogos de artifício, uma tradição muito antiga. O governo é contra, pois trata-se de uma festa pagã, porém não foi capaz de fazer nada para impedi-la.

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